Como um surdo consegue ler?

Além das Letras: Como a Leitura se Manifesta na Vida de um Surdo

A pergunta “Como um surdo consegue ler?” pressupõe uma limitação que simplesmente não existe. A leitura, para uma pessoa surda, não se resume à decodificação de letras impressas em uma página. Ela é um processo muito mais rico e complexo, intrinsecamente ligado à sua língua natural: a Língua de Sinais (Libras, no Brasil). A crença de que a leitura para surdos se limita à transcrição de palavras em português escrito é um equívoco profundo, que desconsidera a experiência linguística e cognitiva singular desse grupo.

Enquanto ouvintes muitas vezes associam a leitura à recepção passiva de informação através da visão, para os surdos, a leitura é uma experiência ativa e multifacetada. A aquisição da linguagem, desde a mais tenra infância, se dá através da Libras, uma língua visual-espacial rica em expressões faciais, movimentos corporais e gestos, que constroem significado de forma dinâmica e holística. Esta experiência molda a maneira como um surdo se relaciona com a linguagem escrita.

A leitura do português escrito, por exemplo, para um surdo fluente em Libras, é um processo de tradução, de transposição de uma modalidade linguística para outra. Ele não lê apenas as letras, mas “traduz” a escrita para a sua língua natural, visualizando mentalmente a construção sintática e semântica em Libras. Este processo cognitivo exige uma habilidade de análise e síntese linguística tão complexa quanto qualquer outra forma de leitura.

Imagine ler um texto em português e, simultaneamente, traduzi-lo para outra língua, como o inglês, mentalmente. Este esforço extra é análogo ao que um surdo faz ao ler o português. Ele não está simplesmente “decifrando” letras, mas construindo um significado através da sua língua materna, a Libras.

Além da leitura do português escrito, a leitura para um surdo também inclui a compreensão de textos em Libras, que podem ser apresentados em vídeos, livros ilustrados com sinais ou em apresentações ao vivo. Esta forma de leitura, mais próxima da sua língua nativa, contribui para uma compreensão mais fluida e aprofundada do texto.

Em resumo, a leitura para um surdo não é uma adaptação ou uma forma “inferior” de leitura. É um processo cognitivo rico e sofisticado, intrinsecamente ligado à sua língua de sinais, e que demonstra a sua capacidade linguística e intelectual de forma plena e autônoma. Considerar a Libras como a base para o desenvolvimento da leitura na comunidade surda é fundamental para entender a verdadeira riqueza e complexidade da experiência de leitura dessas pessoas, evitando, assim, preconceitos e simplificações que banalizam sua capacidade intelectual.