Como identificar o narrador quanto à presença?

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O narrador pode ser classificado pela sua presença na narrativa. Autodiegético, quando é a personagem principal; homodiegético, sendo personagem secundária; ou heterodiegético, quando não participa da história, permanecendo externo aos eventos narrados.

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Desvendando a Voz Oculta: Como Identificar o Narrador e Sua Presença na História

Embarcar na leitura de um livro, conto ou novela é como entrar em uma conversa fascinante. Mas, quem está nos contando essa história? É um observador distante, uma testemunha ocular ou o próprio protagonista? A resposta reside na figura do narrador, elemento crucial que molda nossa percepção dos eventos e personagens.

Identificar o tipo de narrador, especialmente no que tange à sua presença na trama, é fundamental para compreender a perspectiva sob a qual a história é contada e, consequentemente, a profundidade e nuances que a narrativa pode alcançar. É como ajustar o foco de uma lente para obter uma imagem mais nítida e completa.

Vamos explorar os três principais tipos de narrador com base na sua presença na história: autodiegético, homodiegético e heterodiegético.

1. O Narrador Autodiegético: A História Contada em Primeira Pessoa pelo Protagonista

Imagine ouvir a história diretamente da boca do protagonista. É exatamente isso que o narrador autodiegético faz. Ele é o personagem principal, imerso nos eventos e emoções da trama, e nos relata tudo a partir de sua perspectiva única. O uso da primeira pessoa (“eu”) é a marca registrada desse tipo de narrador.

Características Marcantes:

  • Subjetividade: A narrativa é filtrada pelas emoções, pensamentos e opiniões do protagonista. Não há uma versão “objetiva” dos fatos, apenas a interpretação do narrador.
  • Intimidade: O leitor tem acesso aos sentimentos mais profundos do personagem, criando uma conexão íntima e empática.
  • Limitações: A visão do narrador é restrita ao seu próprio conhecimento e experiência. Ele não pode saber o que os outros personagens pensam ou sentem, a menos que lhe seja revelado.
  • Exemplos Clássicos: “O Apanhador no Campo de Centeio” de J.D. Salinger, onde acompanhamos a visão de mundo peculiar do adolescente Holden Caulfield; e “Dom Casmurro” de Machado de Assis, que nos apresenta a história sob a perspectiva (talvez não totalmente confiável) de Bentinho.

2. O Narrador Homodiegético: Testemunha Ocular e Coadjuvante da Trama

O narrador homodiegético também participa da história, mas não como o personagem principal. Ele é uma figura secundária, uma testemunha ocular dos acontecimentos, que compartilha sua perspectiva com o leitor. Ele também usa a primeira pessoa (“eu”), mas o foco da narrativa não está centrado em suas próprias ações e pensamentos, e sim nos eventos que ele observa e nos personagens que ele acompanha.

Características Marcantes:

  • Observação Privilegiada: O narrador tem acesso a informações que o leitor não teria se a história fosse contada por um narrador heterodiegético. Ele interage com os personagens principais, testemunha seus dramas e oferece um ponto de vista interno, ainda que não seja o central.
  • Visão Limitada, mas Valiosa: Embora não seja o protagonista, o narrador homodiegético pode ter um papel crucial na compreensão da história, oferecendo insights valiosos sobre os outros personagens e os eventos que se desenrolam.
  • Menos Subjetividade: Ainda que sua perspectiva seja pessoal, o narrador homodiegético tende a ser mais objetivo do que o narrador autodiegético, já que não está diretamente envolvido no conflito principal.
  • Exemplos: Dr. Watson, o fiel companheiro de Sherlock Holmes, em “As Aventuras de Sherlock Holmes”, de Arthur Conan Doyle. Ele narra as investigações do famoso detetive, oferecendo sua visão e interpretação dos casos.

3. O Narrador Heterodiegético: O Observador Onisciente (ou Quase)

O narrador heterodiegético é aquele que se mantém completamente externo à história. Ele não é um personagem, nem participa dos eventos. Ele é uma voz onisciente (ou que se pretende onisciente) que narra a história em terceira pessoa (“ele”, “ela”, “eles”).

Características Marcantes:

  • Onisciência: O narrador heterodiegético geralmente tem acesso aos pensamentos, sentimentos e motivações de todos os personagens. Ele sabe o que aconteceu no passado, o que está acontecendo no presente e, às vezes, até o que acontecerá no futuro. (É importante notar que nem todo narrador heterodiegético é onisciente em absoluto. Ele pode se restringir ao ponto de vista de um personagem, por exemplo, ou optar por não revelar certos pensamentos e sentimentos.)
  • Objetividade (Relativa): Por não estar envolvido na história, o narrador heterodiegético busca apresentar os fatos de forma mais objetiva, ainda que sua escolha de palavras e a maneira como organiza a narrativa inevitavelmente injetem um grau de subjetividade.
  • Distanciamento: Apesar de sua onisciência, o narrador heterodiegético geralmente mantém um certo distanciamento emocional dos personagens, atuando como um observador imparcial.
  • Flexibilidade: Este tipo de narrador oferece grande flexibilidade ao autor, que pode controlar a informação que é revelada ao leitor e manipular a percepção da história.
  • Exemplos: “Cem Anos de Solidão” de Gabriel Garcia Márquez, onde acompanhamos a saga da família Buendía ao longo de gerações através da voz de um narrador que conhece o passado, o presente e o futuro da família; e “O Cortiço” de Aluísio Azevedo, que retrata a vida em um cortiço carioca sob o olhar de um narrador que observa e comenta os acontecimentos com um tom crítico e social.

Conclusão: A Escolha do Narrador e o Impacto na História

A escolha do tipo de narrador não é arbitrária. Ela influencia profundamente a maneira como a história é contada e recebida. Um narrador autodiegético nos oferece uma experiência íntima e subjetiva, enquanto um narrador heterodiegético nos permite ter uma visão mais ampla e abrangente.

Ao identificar a presença do narrador em uma obra, podemos apreciar melhor a intenção do autor e a mensagem que ele busca transmitir. A voz que nos guia pela narrativa é um elemento-chave na construção do significado da história, e compreendê-la é fundamental para uma leitura mais rica e completa. Portanto, da próxima vez que você abrir um livro, preste atenção: quem está te contando essa história e como essa escolha afeta sua experiência? Você pode se surpreender com as camadas de significado que descobrirá.